Os dados bancários, fiscais e telefônicos estão sob a esfera de proteção da cláusula constitucional resguardadora da intimidade.
2. A garantia fundamental da intimidade e, em particular, da intimidade financeira das pessoas não deve ser exposta a intervenções estatais ou a intrusões do Poder Público, quando desvestidas de fundamentação idônea ou destituídas de base jurídica idônea.
3. Os fins não justificam os meios. Há parâmetros ético-jurídicos para os atos de ‘disclosure’, e os órgãos, os agentes ou as instituições do Estado não podem e nem devem transpor esses parâmetros.
4. Os órgãos do Poder Público, quando investigam, processam ou julgam, não estão exonerados do dever de respeitar os estritos limites da lei e da Constituição, por mais graves sejam os fatos motivadores da instauração do procedimento estatal.
5. Na fórmula política do regime democrático, nenhum dos Poderes da República está acima da Constituição e das leis. Nenhum órgão do Estado, situe-se ele no Poder Judiciário, ou no Poder Executivo, ou no Poder Legislativo, é imune à força da Constituição e ao império das leis.
6. A exigência de respeito aos princípios consagrados em nosso sistema constitucional não frustra nem impede o exercício pleno dos poderes investigatórios.
7. A observância dos direitos e garantias constitui fator de legitimação da atividade estatal. Esse dever de obediência ao regime da lei se impõe a todos (magistrados, administradores e legisladores). O poder não se exerce de forma ilimitada. No Estado democrático de Direito, não há lugar para o poder absoluto.
8. A investigação parlamentar, judicial ou administrativa de qualquer fato determinado, por mais grave seja ele, não prescinde do respeito incondicional e necessário, por parte do órgão público dela incumbido, às normas.
9. Instituídas pelo ordenamento jurídico, as normas visam a equacionar, no contexto do sistema constitucional, a situação de contínua tensão dialética entre o poder do Estado e os direitos da pessoa, um antagonismo histórico. O poder do Estado jamais deverá revestir-se de caráter ilimitado, enquanto os direitos das pessoas não poderão impor-se de forma absoluta.
10. O estado de permanente conflito entre o princípio da autoridade, de um lado, e o valor da liberdade e dos demais direitos e garantias fundamentais, de outro, produz relações de tensão somente passíveis de uma solução de justo equilíbrio com apoio na Constituição e nas leis, e não na busca pragmática de resultados.
11. O respeito à Constituição e às leis pela autoridade nunca poderá ser invocado para configurar fator ou elemento de frustração da eficácia da investigação estatal. Uma insinuação nesse sentido, de todo paradoxal, contraditória e inaceitável, é simplesmente intolerável e não tem sentido, por divorciar-se dos padrões ordinários de submissão à ‘rule of law’, conclui Celso de Mello, ministro do STF em seu voto no Mandado de Segurança 25.668-1, julgado em 23 mar. 2006.
12. A Receita Federal investiga a suspeita de acesso imotivado aos dados fiscais de cerca de 6 mil pessoas físicas e jurídicas por parte de servidores. A violação do sigilo fiscal só ocorre, de acordo com a Receita Federal, quando há o vazamento das informações. Configurada a
violação, a União estará sujeita a eventuais ações de reparação por danos morais (Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 mar. 2006, p. A16).
13. O caseiro Francenildo dos Santos Costa, o Nildo, teve seus dados bancários, sob a proteção da CEF, divulgados pela revista Época, após comparecer e ratificar, como testemunha, perante a CPI dos Bingos, a presença do ministro Palocci em reuniões realizadas em determinada mansão em Brasília. O sigilo bancário do caseiro foi, na perfeita acepção da palavra, quebrado, violado, transgredido. Um ato de completa irresponsabilidade e transgressão aos ditames constitucional e legal. O sigilo bancário é espécie do gênero sigilo de dados, prevista na CF como direito fundamental (art. 5º, XII). Os valores constitucionais da intimidade e da privacidade lhe dão sustentação. Alicerça-se também no princípio da liberdade de negação, segundo o qual ninguém pode ser constrangido a informar sua privacidade. Como direito fundamental, o sigilo bancário não pode ser absoluto, ou seja, pode ser relativizado ou, melhor, excepcionado diante da extrema necessidade do caso concreto, em processo judicial, com garantia de ampla defesa e do contraditório, e por determinação judicial, em razão do princípio da reserva de jurisdição. O juiz quando ordena a abertura de um sigilo não o viola, não o quebra, mas excepciona tal direito para o caso em questão. O veículo de comunicação, ao divulgar os dados bancários violados do caseiro, abusou no exercício da liberdade de informação e poderá responder por reparação civil em razão de danos morais. A liberdade de informação, como qualquer outro valor perante o ordenamento jurídico, não pode ser exercida de forma absoluta. A liberdade de informação como o resguardo da privacidade têm igual estatura perante a Lei Maior, e em nenhum dos critérios de ponderação encontram-se razões para justificar a divulgação. A conduta da revista Época também não tem a aprovação do Código de Ética Jornalística, vigente desde 1987, por força do qual o jornalista deve respeitar o direito à privacidade do cidadão (art. 90, ´g´), o jornalista deve evitar a divulgação de fatos de caráter mórbido e contrários aos valores humanos (art. 13, ´b´) e o jornalista deve ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, todas as pessoas objeto de acusações não comprovadas, feitas por terceiros e não suficientemente demonstradas ou verificadas, além de tratar com respeito a todas as pessoas mencionadas nas informações divulgadas (art. 14, ´a´ e ´b´), conclui Paulo Quezado, advogado (“Quebra do sigilo bancário e liberdade de informação jornalística – O caso do caseiro ´Nildo´”, Fortaleza, 05 abr. 2006).
14. A privacidade pode ser definida como a capacidade de um cidadão administrar a revelação de informações sobre sua vida pessoal (íntima, econômica e política), como ideologia, perfil de renda e de gastos, hábitos amorosos, sexuais e preferências íntimas em geral, explica Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, da FGV/EESP. A existência de privacidade é o resultado do exercício de algum tipo de anonimato, em razão do qual só nos permitimos revelar a terceiros, incluindo o Estado, informações cuja publicidade consideramos adequada e razoável (‘Os valores da privacidade’. Valor, São Paulo, 07 abr. 2006, Fim de Semana, p. 16).
15. Em decorrência da aumentada capacidade do Estado de ‘ver’ os comportamentos dos cidadãos (‘sociedades de vigilância’), por meio da informação pública de centros cada vez mais aperfeiçoados e eficazes, muito além da capacidade prevista por George Orwell (1903 – 50) no modelo do Grande Irmão (‘Big Brother’), o modelo do ‘panopticon’, de Jeremy Bentham, inglês (1748 – 1832), torna-se ameaçadoramente atual, opina Norberto Bobbio, italiano (1909 – 2004). No império do Grande Irmão, de Orwell (autor de ‘1984’, de 1949), os súditos estão continuamente sob o olhar de um personagem do qual nada sabem, nem mesmo se existe. No ‘panopticon’, de Bentham, um projeto de edifício com a finalidade principal de servir como presídio, no qual não existe privacidade, as pessoas são mantidas sob vigilância de máxima
eficiência. Como uma forma de controle dos responsáveis pela vigilância, o Estado democrático assegura ao cidadão o direito ao acesso às informações mantidas a seu respeito (‘O Grande Irmão existe’. Valor, São Paulo, 07 abr. 2006, Fim de Semana, p. 12).
16. A CF brasileira, em seu art. 5º, dispõe: ‘XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado’.
17. O caseiro Francenildo Costa interpôs ação contra a CEF e cobra R$ 17,5 milhões como indenização de danos morais pela violação de seu sigilo bancário. Em outra ação, interposta contra a revista Época, o caseiro solicita R$ 4,2 milhões como indenização de danos morais pela divulgação de seu extrato bancário (Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 abr. 2006, p. A4).
18. O Tribunal da Comarca de Dusseldorf investiga ´sabotagem informática´ e solicitou ao presidente do STJ, por meio de carta rogatória (CR 297, de 2005), os dados do usuário do provedor ´Universo On Line (UOL)´ responsável pelo bloqueio em 25 fev. 2004 do acesso aos ´sites´ atendidos pela empresa ´Online-forum´. Intimada, a UOL impugnou a homologação da sentença alemã alegando a inviolabilidade dos dados estabelecida pela Constituição brasileira. Mas o presidente do STJ concedeu em 09 out. 2006 o ´exequatur´ à Justiça alemã. O STJ já se havia manifestado favoravelmente ao fornecimento de dados cadastrais em outra ocasião. Informações como o endereço, por exemplo, não estão protegidas pelo sigilo. A proteção é ´de dados´ e não os ´dados´. A proteção dos ´dados´ tornaria impossível qualquer investigação administrativa, fosse qual fosse.
19. Vivemos um momento difícil. No campo internacional, o império de Bush a ameaçar o mundo inteiro. Internamente, um ambiente estranho começa a inquietar-nos. É uma onda irrefreável de denúncias, gravações de conversas telefônicas, gente sendo preso sem provas. Cria-se o terror, como nos velhos tempos de Beria, na antiga União Soviética, ou no período do macartismo nos Estados Unidos, avalia Oscar Niemeyer (´Entrevistas´. Folha de S. Paulo, São Paulo, 15 jul. 2007, p. A3).
20. A Lei nº 10.174, de 09 jan. 2001 (introdutora de nova redação ao § 3º do art. 11 da Lei nº 9.311, de 24 out. 1996, instituidora da CPMF), permite a utilização de dados da CPMF para a investigação de suposta prática de crime contra a ordem tributária. A investigação poderá alcançar fatos pretéritos à edição da referida Lei, de natureza procedimental, de acordo com o STJ (Valor, São Paulo, 05 set. 2007, p. E1).