Thursday 2 October 2008

Como fazer o capitalismo se interessar pelos pobres? Bill Gates acha que sabe, mas está errado

Celebridades, às vezes (traindo certa culpa) dizem coisas assim: “o capitalismo melhorou sim, as vidas de muitas pessoas,mas também deixou de fora bilhões delas”. Como remediar? Bill Gates propõe: “Precisamos de um capitalismo mais criativo. As grandes corporações podem ser o instrumento para incluir mais gente no sistema; são elas que têm as competências para fazer inovações tecnológicas que funcionem para os pobres”.

Algum ogro ousaria discordar de proposta tão generosa?

Obrigado por perguntar.

Se a história ensina algo, as grandes corporações não serão o caminho.Veja por que.

O capitalismo é construído sobre o direito das pessoas “terem coisas” (“titularidade da propriedade privada”,como dizem pomposamente). Existem grandes diferenças entre os cerca de 200 países que o praticam, como ensina em livro recente o scholar William Baumol. Há pelo menos quatro tipos de capitalismo - de qual deles Bill Gates estará falando?

Em certos bolsões da America Latina, Oriente Médio árabe e África, há o que chamam de capitalismo oligárquico. Nele, riqueza e poder são altamente concentrados, e as regras existentes reforçam essa situação. Naturalmente ,Bill Gates não está se referindo a isso.

Noutro tipo, o capitalismo é guiado pelo estado - governos incentivam os setores da economia que identificam como tendo mais chance de serem vencedores. As economias do sudeste asiático tiveram sucesso assim,mas nas regiões miseráveis a que se refere Gates, não há nada parecido com uma base industrial da qual se possa selecionar “vencedores”. Esqueça.

Um terceiro tipo seria o capitalismo de grandes corporações - o defendido por Gates como veículo de inclusão para os pobres. Grandes empresas dominam a produção e o emprego,produzindo em massa inovações criadas por empreendedores. Europa Ocidental e Japão são exemplos.

Será que filiais de grandes corporações desempenhariam esse papel em lugares pobres? Difícil. Falemos claro:grandes empresas tendem a só inovar para ganhar dinheiro da maneira pela qual estão estruturadas para ganhar dinheiro. Não lhes falta talento ou recursos, o que elas não têm é apetite para arriscar -têm medo de gerar a percepção de que podem tornar seus acionistas mais pobres com inovações de margem ($$) mais baixa. Esse tipo de inovação é o único que pode dar certo em “mercados de pobre”. Bill Gates está exortando as grandes corporações a irem contra seu próprio DNA. O instinto delas é: inovação sim, mas só do tipo “mais da mesma margem”.

A IBM perdeu a liderança em PCs porque não deu para conciliar seus processos para comercializar main frames [caros e com margens de mais de 60%],com processos para PCs [baratos e margens de 20-30%]. Canon e Ricoh com pequenas copiadoras de mesa de margem baixa, fizeram a poderosa Xerox sangrar. As motos Honda idem com as Harley Davidson. Rádios e TVs transistorizados Sony acabaram com os modelos de mesa da RCA (e acabaram, de quebra, com a própria RCA) .

Inovações ”para pobre” geralmente entram no mercado “por baixo” - têm performances inferiores, são mais baratas e só têm apelo ao público que não usa o produto-padrão.

Quase ninguém usava fornos de micro ondas na China antes da Galanz. Com um modelo de negócio de altos volumes a preços muito baixos, a chinesa Galanz (não a Samsung, não a GE, não a Siemens) criou um mercado: em 1993 ela tinha 2% de market-share, em 2000 tinha 76%. Clientes menos exigentes (pobres) ficam felicíssimos em adotar produtos assim, pois a outra opção é não ter produto nenhum.

As grandonas, quando agem, o fazem quase sempre para reagir à ameaça de “tubaínas” locais. Veja a Unilever. Sua subsidiária na Índia - a Hindustan Lever - sempre focara o topo do mercado, até que apareceu a Nirma oferecendo detergente “para pobre”, muito mais barato, produzido segundo um modelo de baixo custo. Formulação, embalagem, produção, distribuição - tudo diferente. A Unilever teve de se mexer. Reformulou totalmente seu modelo para evitar que a “tubaína” da Nirma, vinda de baixo, continuasse a bicar o topo do mercado como já começara a fazer. A Unilever é das poucas que reconhece ativamente o mercado “para pobre”, tendo incorporado sua experiência hindu às suas práticas globais,mas ela é exceção. A GM fala há anos em produzir um carro abaixo de 3000 dólares, mas quem já lançou um foi a indiana Tata Motors. É assim desde sempre: a poderosa Western Union dona das comunicações no século XIX (telégrafo), rejeitou o telefone de Graham Bell porque seu sinal só alcançava três milhas. A Bell Telephone começou então com um modelo de baixo alcance e “subiu”, melhorando pouco a pouco a tecnologia até matar a Western Union.

Só uma coisinha: nos locais hoje excluídos, não há nada a ser destruído porque não há nada criado. O estímulo “de fora” deve ser para o surgimento da fase “pré-destruição”, ou seja, da fase da “criação criativa” mesmo. A partir daí, o empreendedor local resolve.

* Artigo publicado na Revista Época Negócios – Nº 20– Outubro 2008 – Coluna INOVAÇÃO.

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Fonte: www.clementenobrega.com.br

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